domingo, 17 de outubro de 2010

A Lua da Vez


Por Malu Fontes

Graças à televisão, cada geração tem em seu imaginário uma espécie de chegada particular à lua. Deve ser uma experiência até hoje inesquecível para todas as pessoas que, em 1969, puderam ver pela televisão (e eram poucas no mundo, dado o fato de o eletrodoméstico ser, então, ainda um privilégio das elites) os primeiros registros fantásticos e inacreditáveis do astronauta Neil Armstrong desembarcando da nave Apolo11 e dando os primeiros passos em solo lunar. Sim, há fanáticos e persecutórios que até hoje não acreditam que o homem foi à lua, mas isso não deixa de fazer deste evento um dos mais importantes do século XX. Cerca de 20 anos depois, também pela televisão, o mundo assistia hipnotizado a outro fato redefinidor da ordem mundial: o Muro de Berlim, uma das coisas mais assombrosas da estupidez humana, ser literalmente despedaçado em tijolos.

No início dos anos 2000, a cena história e televisiva que compete em grandiosidade veio embalada em doses de tragédia até hoje difíceis de explicar e de entender, pela escala e dimensão, foi a das imagens praticamente transmitidas em tempo real para todo o mundo, das torres gêmeas do World Trade Center, em Nova Iorque, incandescentes e desintegrando-se a partir do choque de dois aviões. Outras imagens fenomenais se eternizaram a partir das câmeras da TV, como o tsunami, o terremoto do Haiti, mas essas entram em outro enquadramento, o das tragédias ditas naturais. Já o desembarque de Armstrong na Lua, a derrubada do Muro de Berlim e a destruição do World Trade Center trazem como marca fundamental a ação humana.

ROMARIA - Durante mais de 24 horas ininterruptas, o telespectador do final dos anos 2000 recebeu da televisão a sua 'versão' da chegada à lua. A Apollo 11 foi transformada numa cápsula metálica chamada Fenix, que ao invés de subir na esfera terrestre, desceu aos confins do miolo da terra, no Deserto do Atacama, no Chile, para trazer de volta à superfície não um astronauta, mas 33 mineiros chilenos que estavam soterrados há mais de dois meses a 700 metros de profundidade. Por mais que seja comemorável e espetacular que uma broca metálica tenha conseguido salvar três dezenas de homens, não dá para retirar da televisão de todo o mundo o protagonismo do espetáculo que se montou no acampamento logo batizado de Esperança e que já especula-se, será transformado em ponto de romaria.

Por mais que o fato seja relevante, não é óbvio imaginar as razões pelas quais uma emissora de TV a cabo brasileira como a GloboNews, a de maior audiência em telejornalismo do sistema por assinatura, tenha transmitido em tempo real, durante mais de 24 horas, cada um dos 33 mineiros, um a um, sendo resgatados, reencontrando-se com familiares e sendo efusivamente abraçados pelo presidente do Chile, Sebastian Piñera. Como era de se esperar, o faturamento político do episódio não foi pequeno. Mesmo porque, especula-se que o poder público chileno teria investido mais de 20 milhões de dólares para o projeto de salvamento dos mineiros. Mas daí ao presidente, ao redor do buraco da broca, declarar que vai erradicar a pobreza do Chile, o exagero retórico em torno da exploração midiática é indisfarçável. Mas diante da presença massiva de emissoras de TV de todo o mundo, quem, no lugar de Piñera, haveria de perder uma oportunidade dessas de ficar bem na fita?

ATRACADA - O espetáculo dos mineiros desenterrados resvalou até na campanha eleitoral brasileira. No feriado em torno de Nossa Senhora Aparecida, a mulher do candidato José Serra, Mônica, chilena, passou uma missa inteira atracada com uma imagem da Santa em bom tamanho, com a assessoria anunciando que era um presente a ser entregue pela família aos mineiros agora eternamente transformados em heróis. Ter algo inteligente e inteligível para ser dito por uma emissora de TV durante 24 horas em que a Fenix desenterrava um mineiro atrás do outro já não é coisa fácil para nenhum apresentador de TV e menos ainda para a audição dos telespectadores, pois as palavras são as mesmas, as descrições são de entediar de tão repetidas ou vazias de efeito verbal. Mas nada se compara ao fato de essas mesmas emissoras terem convidado nada menos que ‘comentaristas’ para fazer análise do processo de salvação. Não há do que duvidar. A depender das falas desses comentaristas de desenterramento de gente, o mundo terá 33 novas autoridades incontestáveis em auto-ajuda e lições de resistência e superação. Amir Klink que se cuide em sua carreira de cobiçada atração em palestras motivacionais. Esse tema agora tem dono, aliás donos: os 33 mineiros.

E haja assédio de todos os insetos do show business que adoram rondar as luzes das câmeras e dos holofotes. Um milionário dali anuncia um bônus de 20 mil dólares a cada um, outro promete a todos um cruzeiro luxuoso familiar pelos mares da Grécia, outro oferta trocentos ingressos para que eles possam assistir, dos pontos mais vips dos respectivos estádios, a partidas de futebol do Chelsea, Real Madrid e Barcelona. Um mineiro, fã de Elvis Presley, nem bem entrou em sua própria casa e foi convidado pela holding que cuida dos negócios do rei do rock a visitar a casa onde Elvis morou nos últimos 20 anos antes da morte. E isso sem falar no barraco entre um mineiro e suas duas mulheres que não se sabiam entre si, nos trocentos livros de aventura, auto-ajuda, liderança e superação que serão escritos, nos filmes documentários e de ficção que serão feitos e nas infinitas bugigangas como camisetas, canecas e que tais que deverão se reproduzir aos milhares sobre os 33 heróis. É a versão reality em estado amplo e irrestrito.


Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado em 17 de Outubro de 2010 no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com

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