domingo, 24 de outubro de 2010

HOMENS, MULHERES E SEUS PRAZOS DE VALIDADE


Por Malu Fontes

Quais as interpretações possíveis de serem estabelecidas entre os anúncios publicitários de cosméticos, produtos de beleza, medicamentos e toda a sorte de procedimentos do campo da saúde, vistos todos os dias na televisão, e as cenas de convulsão social protagonizadas por grevistas e manifestantes em Paris e Lyon, na França, ao longo desta semana? A princípio, entre um universo e outro, há tanto de conexão como entre o Movimento Sem Terra, no Brasil, e o Tea Party, a reação dos ultra-conservadores republicanos nos Estados Unidos contra o Governo Obama. Na vida real e de viés, no entanto, há muito mais elementos em comum relacionando os conflitos na França e os anúncios dos eliminadores de rugas na TV do que a desatenção distraída do telespectador é capaz de pressupor, entre uma notícia e um intervalo comercial. 
  
Como panorama de fundo dos dois cenários está o mito contemporâneo, vendido por anúncios publicitários, políticas públicas e pela indústria do bem, segundo o qual o envelhecimento é maravilhoso, uma esplêndida fase da vida, agora chamada não mais de velhice, nem de terceira, quarta ou quinta idade, mas de melhor, a melhor idade. Entre os conflitos urbanos violentos dos manifestantes franceses contra a reforma da Previdência, aumentando a idade mínima para a aposentadoria, e as propagandas dos artifícios farmacológicos e cosméticos que fazem com que Ana Maria Braga, Suzana Vieira, as bailarinas de Faustão, a endiabrada Maísa mirim, inventada por Raul Gil e surrupiada por Sílvio Santos, e todo o elenco, o do bem e o do mal, da trama de Malhação pareçam fazer parte de uma mesma faixa etária uniforme, a juvenilização eterna, está o desmascaramento de que envelhecer não é essa beleza toda que os discursos sociais querem fazer crer.  


NETINHO ABORTADO - Mesmo que a outra opção para o envelhecimento seja a morte, o caos francês deveria servir para que o mundo arregalasse os olhos e parasse de fazer de conta que acha mesmo o envelhecimento a oitava maravilha da vida. A televisão desdiz-se quanto a isso todos os dias. Os telejornais vendem a velhice das políticas públicas. O intervalo comercial dá um soco no olho com catarata dos velhinhos. Se envelhecer fosse bom e bacana, por que raios convidariam Ivete Sangalo, Cláudia Leite e Camila Pitanga para dizer que uma tintura da marca tal encobre melhor os fios brancos? Se velhice vendesse alguma coisa, seria Cleide Yáconis, ou seu ex-marido Stênio Garcia, que estrelariam comerciais para cabelos brancos, pois as belas citadas estão longe de qualquer signo de envelhecimento. As novelas estão aí para mostrar que Maitê Proença já entrou para o elenco das avós, mesmo que em Passione o netinho tenha sido abortado a tempo de Sylvio de Abreu, o autor, não ser convocado por uma das duas campanhas à Presidência da República para depor contra ou favor de um dos dois candidatos.
  
O que os protestos na França não mostram, mas dizem, é que os homens e as mulheres contemporâneas ganharam cerca de três décadas de vida extra no último século, mas a sociedade e o poder público ainda não sabem o que fazer com esse tempo-brinde. Diante do envelhecimento da população mundial, conseqüente das conquistas científicas e sociais, e da redução da população jovem, pelo fato de as mulheres parirem cada vez menos e mais tarde, a velhice prolongada, além de uma série de outros desafios que impõe, representa, para todos, uma fatura a ser paga. Mas por quem? A greve que parou os principais serviços na França foi motivada pela intenção de Nicolas Sarkozy de elevar a idade mínima para requerimento da aposentadoria de 60 para 62 anos, e da aposentadoria plena de 65 para 67 anos. E deu-se o caos. Em tese, a reação da população francesa representa uma contradição em termos ao que se propõe no discurso celebratório da chamada melhor idade. Todos não querem ser eternamente jovens, saudáveis, sem rugas, siliconados, exibindo parceiros sexuais de 20 e poucos anos, comprados como mimos nos supermercados do consumo erótico?
  
VELHINHAS GOSTOSAS - Sim, envelhecer comportando-se como e parecendo jovem é o sonho de todos, desde que não lhes peçam para trabalhar dois anos a mais antes de aposentar-se, pois, nesse instante, ter 60 anos é muito conveniente para gritar algo como ‘já sou velho/velha: já trabalhei o suficiente, não posso mais e agora as políticas públicas que me sustentem’. Obviamente que por trás de quaisquer propostas de readequação do sistema previdenciário de qualquer país está uma série de questões econômicas e sociais mais complexas, mas não há como fugir desse efeito colateral da possibilidade (o trabalho) de morrer após os 90 anos e não antes dos 60, idade que, até pouco tempo atrás, era mais do que de bom tamanho para despedir-se da vida.
  
A imortalidade é desejável? Ok, mas como se diz, não há almoço gratuito. Quem vai pagar a conta das velhinhas gostosas e dos velhões garanhões que deixam de trabalhar aos 60, se os jovens, coitados, órfãos de perspectivas e cada vez em menor quantidade, mal dão conta de pagar as próprias? E se o prazo de validade para a cama, para a beleza e para a vida social foi prorrogado e isso é tido como algo a ser comemorado, como fazer para deixar o trabalho, a vida profissional, fora dessa comemoração? É preciso ainda e também combinar algo com a sociedade, nem um pouco disposta, sabe-se, a dar emprego a alguém com mais de 50 anos. O mundo precisa decidir: a melhor idade é algo bom de verdade ou todos vão assumir que os velhos são um estorvo e nem para o trabalho servem? Ficar como trepadeira, no muro, afirmando teses para, em seguida, negá-las no exercício social, é optar pela hipocrisia. Mirem-se nos exemplos dos homens e mulheres, não apenas de Atenas, mas de Paris.


Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado em 24 de Outubro de 2010 no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com

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