domingo, 31 de outubro de 2010

Criatividade do crime e luta de classes


Por Malu Fontes

Nas últimas semanas, o telejornalismo brasileiro voltou praticamente todos os seus holofotes para a cobertura das eleições de hoje. Entretanto, mesmo assim, as escaladas de todos os telejornais nacionais foram forçadas a dedicar espaços generosos e quase diários para a série de arrastões que, durante todo o mês de outubro, vem aterrorizando motoristas nas vias de diferentes bairros da cidade do Rio de Janeiro. A violência urbana, nunca é demais ressaltar, não é um problema de proporções gigantescas apenas no Rio ou nas principais capitais brasileiras. Entretanto, até mesmo pelas posições estratégicas que ocupam no cenário nacional, o Rio de Janeiro e São Paulo têm seus casos de violência, dos grandes aos prosaicos, repercutidos com muito mais frequência e intensidade no telejornalismo.

Na televisão, a violência do Rio é automaticamente associada, pelo telespectador, à ação dos traficantes de drogas, cujo poder domina os morros e determina vida ou morte à população do local, hoje refém do tráfico ou das milícias montadas por policiais corruptos, transformados em criminosos tão (ou mais) cruéis quanto os traficantes mais raivosos. Em São Paulo, o sinônimo da violência organizada é o PCC, Primeiro Comando da Capital, organização criminosa sediada basicamente nos presídios mas tocada por ‘soldados’ que, fora da cadeia, atuam fortemente não apenas no tráfico, mas também em fortes esquemas de sequestros, assaltos a banco e roubo de cargas valiosas. Comparando-se o modus operandi dos traficantes do Rio e o do PCC paulistano, ou, melhor ainda, as narrativas que deles fazem os meios de comunicação, prevalece, associada à criminalidade no Rio, uma atuação mais espetacular, varejista e, sobretudo, pulverizada, tendo em vista a competição e a disputa de poder e mercado entre os líderes do tráfico de diferentes morros. Já o PCC, é descrito no telejornalismo como coeso e infinitamente mais silencioso e discreto em seus métodos de terror. No dia em que resolveu fazer barulho, promovendo ataques violentos e simultâneos na cidade, parou São Paulo e fez o país arregalar os olhos.

MENINAS DOS OLHOS - Dado o poder de controle e fogo e a falta de limites dos traficantes cariocas, até recentemente nenhuma força policial, exceto o caveirão do BOPE, ousava entrar em praticamente nenhuma das grandes favelas cariocas. Essa realidade mudou muito pouco e há quem acredite que dificilmente mudará a curto ou médio prazo. Entretanto, todo telespectador de telejornal sabe que, recentemente, o poder público no Rio vem investindo todas as suas estratégias de segurança pública na implantação das UPPs, Unidades de Polícia Pacificadora. A medida consiste em aproximar a polícia e os moradores dos morros, mantendo os policiais nas comunidades e estreitando os laços de convivência. Até poucas semanas atrás, as UPPs eram as meninas dos olhos do governador Sérgio Cabral, das autoridades da Segurança Pública, dos moradores dos morros e da população em geral. A população acreditava poder dormir tranquila, sem mais medo dos tiroteios que costumam irromper entre uma favela e outra, sempre incrustadas em bairros de classe média. Os traficantes, no entanto, asfixiados em seu negócio e sem seus lucros, obviamente não ficaram nem um pouco satisfeitos e tomaram uma providência bem à sua maneira.

O sucesso atribuído às UPPs era tamanho que, claro, em época de campanha eleitoral, o programa passou a ser considerado como passível de implantação em todas as cidades brasileiras, ideia que, em si, soa meio estapafúrdia, pois a realidade da segurança pública dificilmente será igual entre as cidades, mesmo entre as mais violentas; depois, um cenário onde a polícia não toca o pé em dezenas de bairros porque sabe que vai morrer é algo ainda muito particular dos morros cariocas. O fato, no entanto, é que, enquanto as autoridades e os felizes moradores do asfalto viajavam na tese do sucesso pleno das UPPs, os traficantes, com o caixa em declínio, preparam sua vingança maligna e a pulverizaram por toda a cidade, apavorando não apenas todo e qualquer morador, mas o setor turístico, às vésperas do verão. Asfixiados com a presença da polícia diuturnamente nas favelas, desceram morro abaixo, espalharam-se pelos mais distintos bairros e por diferentes vias de tráfego da cidade e, armados até os dentes, começaram a tocar o terror, promovendo arrastões no trânsito, no ritmo de um dia sim e outro também e mais de um por dia.

Um mês de arrastão. Foi o que bastou para que os moradores do asfalto, apavorados, parassem de comemorar as UPPs e passassem a demonizá-las. O governador Sérgio Cabral, reeleito com mais de 66% dos votos válidos, que tire da cartola uma medida para enfrentar a criatividade do crime carioca raivoso pela asfixia que lhe foi imposta pelo estado. A classe média do Rio já está creditando os arrastões à diminuição do policiamento no asfalto e seu deslocamento para o contingente que passou a atuar nas favelas. O pedido do asfalto é claro: a favela que ferva, lá dentro e sem polícia; esta, que venha proteger o asfalto morro abaixo. Essa é a nova luta de classes à brasileira, estruturada em quem tem ou não o direito de ser protegido. Como já se sabe de que lado a corda arrebenta, há quem garanta que os traficantes já podem comemorar.

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado em 30 de Outubro de 2010 no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com

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