domingo, 26 de setembro de 2010

O senhor dos gramados e o apocalipse fake

Por Malu Fontes

Nestas semanas pré-eleitorais, as coisas começaram a soar muito estranhas no cenário noticioso. Os telejornais parecem ter se tornado porta vozes de tramas, intrigas, ataques, defesas, atribuição de culpas, castigos e linchamentos morais muito mais eficientes que as telenovelas. Enquanto Clara, a vilã linda e loura do novelão das nove, passou por um fenômeno de mudança brusca de personalidade, para melhor, a vilania do noticiário recrudesceu, voraz e faminta por nomes, cargos, veículos de imprensa e julgamentos sumários.

Os dirigentes do país, veículos de comunicação, os intelectuais, os artistas, os sindicatos, todos parecem passar por um surto de radicalismo e histeria que nasce na imprensa e agiganta-se nas redes sociais e em torrentes de mensagens sórdidas e de anúncio do apocalipse que caem às pencas nas caixas postais eletrônicas dos digitalmente incluídos. E é bom combinar, antes de comungar com essa onda rumorosa, que não há inocentes nessa trama.

De repente, tudo o que acontece no país passou a ser radicalmente partidarizado. O metrô de São Paulo sofreu uma pane que tumultuou a cidade? O candidato a presidente pelo PSDB, José Serra, sequer respirou duas vezes antes de correr para a frente das câmeras e dizer textualmente que, embora não tivesse provas, acreditava que o fato havia sido coisa do PT, uma orquestração. No Governo Federal, por sua vez, personagens de nomes pouco familiares tornaram-se tops nas manchetes. Enquanto o Brasil ainda nem sabia quem era Erenice Guerra, nem mesmo que existia alguém com esse nome à frente de um dos ministérios mais estratégicos do país, eis que todos os telespectadores são levados a ficar íntimos não apenas dela, mas do marido, dos filhos, dos amigos dos filhos, dos irmãos. E haja maniqueísmo costurado a partir de todo e qualquer evento que um dia possa ter acontecido na sala de estar doméstica e do gabinete de Erenice.

ANOS 70 - Uma parcela da imprensa que nunca negou ser opositora do Governo Lula (embora nunca tenha assinado um editorial oficializando isso) radicalizou nas manchetes, transformando em fato concreto e comprovado todo e qualquer indício contra qualquer nome do governo ou seu descendente/ascendente três ou mais gerações à frente ou atrás. Nesse contexto de combustível político derramando-se por telejornais, páginas da imprensa escrita e sites, blogs e redes sociais na Internet, o presidente da República (um poço até aqui de ira contra os setores da mídia que os governistas batizaram de PIG, partido da imprensa golpista, ou seja, aquela que lhe faz oposição explícita e, sim, carrega muito nas tintas), enfureceu-se para valer e questionou o papel do setor no cenário político, acusando-o de querer ser um partido.

Aliada a uma fala do ex-ministro José Dirceu, para quem o problema da imprensa é excesso de liberdade, a queixa do presidente Lula foi a deixa para que, não apenas a imprensa, mas também um grupo de intelectuais, políticos de oposição e artistas convocassem o país a lutar pela democracia, como se esta estivesse em risco no país. O clima, só e somente só, no noticiário político é de uma ordem tal que é capaz de causar uma confusão temporal em quem desperta sonolento e assiste um telejornal nacional nas primeiras horas do dia. Tem-se a impressão, por instantes, a partir de algumas palavras-chaves das matérias, que algo parece ter levado o país ao maniqueísmo de algum tempo localizado nos anos 70.

A histeria é recíproca entre oposição e situação e contamina a todos que buscam um lugar sob um desses guarda-chuvas. Artistas e intelectuais conclamam seus públicos em veículos de imprensa a lutar contra a ditadura do petismo; ao mesmo tempo, sindicatos de jornalistas conclamam seus filiados a lutar contra... a imprensa (a golpista, segundo explicam, que fique claro). O clique para perceber que de anos 70 essa paranóia não tem nada é o fato de que os personagens do embate naqueles idos terem causas concretas. Hoje, tudo não passa de um semblante para aparecer no telejornal, na editoria de política ou na capa dos cadernos e sites de cultura. No final das contas, a coisa é comezinha e fácil de ser explicada. A Veja, a Globo, a Folha de S. Paulo não querem é que o governo lhes aponte o dedo para quaisquer críticas; o governo, por sua vez, não tolera que estes lhe façam o mesmo, tampouco que apontem as contradições ou falhas do governo.

NEYMAR - A campanha eleitoral e esse climão de histeria só traduz uma das principais marcas do nosso tempo: a ojeriza a qualquer ideia de controle ou limite, a aquilo que a psicanálise chama solenemente de exercício da função paterna. Vive-se um surto alucinatório de pânico de que qualquer outro queira exercer qualquer tipo de limite, traduzido na relação imprensa versus governo por críticas e cobranças entre si. O fato que melhor traduz essa manifestação histérica foi a demissão do técnico do Santos, Dorival Júnior, enxotado porque achou que poderia aplicar algum limite ao atual senhor dos gramados, Neymar. Aos 18 anos e com salário em torno de 400 mil mensais, o garoto deformou o ego e não respeita nenhuma hierarquia. Achando que poderia puni-lo, mantendo-o afastado da equipe no jogo da última quarta-feira, o técnico foi demitido sob acusação de ter uma crise de autoridade, romper a hierarquia e ter uma atitude intempestiva e injustificada. A única coisa que parece haver de errado nestas palavras é o personagem aos quais elas foram endereçadas. Não era justamente essa a fala que deveria ser associada ao prodígio milionário que não quer tomar conhecimento de qualquer limite? O que tanto a mídia chamada de golpista como o alto e o baixo escalão do governo querem é o mesmo extermínio de limites. Os histéricos, todos, mesmo crendo-se em lugares de fala diametralmente opostos, sonham mesmo é com a idéia de comportarem-se como Neymar e serem tratados como tal.

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado em 26 de Setembro de 2010 no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com

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