domingo, 3 de outubro de 2010

A semiótica do jogo do bicho e a greve dos jegues

Por Malu Fontes

Se há coisa que o telespectador comum deve ser incapaz de compreender são os termos em que se dão os debates de candidatos a cargos eleitorais na TV. Talvez uma metáfora da contravenção ajude a compreender a dificuldade de apreensão, por parte da audiência, do sentido existente entre as perguntas e as respostas entre os candidatos. Para quem nunca teve o jogo do bicho como tema e rotina nos hábitos e práticas cotidianos, soa estranhíssimo ouvir uma pessoa, geralmente mais velha, explicando que sonhou com um determinado assunto, sem nenhuma relação aparente e direta com algum representante da fauna, e que, com base nesse sonho, irá apostar em um dos animais constantes na cartela de opções do Jogo do Bicho. E numa associação livre e estranhíssima, ancorada em teorias hipotéticas/dedutíveis impossíveis de serem compreendidas por quem não compartilha do que deve ser uma semiótica especial dominada apenas pelos iniciados apostadores do jogo do bicho, o sonho com uma folha conduz a uma cobra, o sujeito vai lá, joga, e até calha de acertar.

Do mesmo modo, ou seja, ancorada numa espécie dessa semiótica incompreensível semelhante à compartilhada pela comunidade de sonhadores, intérpretes e apostadores do jogo do bicho, tão obscura e sinuosa quanto, é a dinâmica entre as perguntas, as respostas, as tabelinhas, as réplicas e tréplicas entre os candidatos nos debates. Um parlapatão fala que o outro é corrupto, que tem helicóptero, fazendas, empregou a mãe e o papagaio e o outro responde dizendo que se for eleito vai fazer isso e aquilo. Na réplica, o intempestivo perguntador cita um bispo em greve de fome e os escândalos imobiliários em Salvador. Outro acusa um quarto de inventar números e este responde perguntando por que seu interlocutor não foi à Brasília pedir obras. Ou seja, a lógica estruturante entre os debatedores é algo entre um dizer alho e o outro, bugalhos ou um surf nonsense sobre as perguntas com uma fuga que somente a semiótica dos sonhadores que deliram com um escorpião e apostam num veado é capaz de explicar como se chegou de uma coisa a outra.  

DONA POMBINHA - Neste cenário, se há algo estranho é a origem dos entrevistados dos telejornais das emissoras que na véspera realizaram um debate. Na última quarta-feira, por exemplos, os telejornais das emissoras ligadas à Rede Globo entrevistavam felizes telespectadores-eleitores, anunciando que o debate na noite anterior fora um empurrão e tanto para decidir o voto. Ou esses telespectadores têm uma capacidade ‘diferenciada’, como dizem os emergentes, de captar e capturar algo novo na fala dos debatedores, ou eles viram um debate e quem os assiste nessas entrevistas aferidoras de resultados viu outro.  

Na esfera nacional, quando os dados do jogo já pareciam estar todos expostos no tabuleiro eleitoral, eis que surge, em Brasília, aos 45 minutos do segundo tempo, uma senhorinha mais esdrúxula que uma Dona Pombinha de telenovela e que atende pelo sonoro e estranho nome de Dona Weslian. Trata-se de uma mulher de vivência política inquestionável, afinal está há meio século casada com o ex-governador do Distrito Federal, Joaquim Roriz, um personagem de tamanho estofo eleitoral duvidoso que colocou o Supremo Tribunal Federal para madrugar se a lei da Ficha Suja o impediria ou não de disputar mais um mandato de governador do DF.

Astuto que é, diante do impasse dos ministros do Supremo, Roriz preferiu não correr risco esperando uma decisão que poderia atrapalhar seus planos e inviabilizar sua posse caso fosse eleito e depois o STF julgasse o mérito do caso de modo desfavorável a ele e tirou uma carta, ou melhor, uma mulher, a própria, da manga. Roriz simplesmente anunciou que Dona Weslian, ficha limpíssima, mulher discreta e silenciosa, dessas que vivem à sombra do marido e sempre nos bastidores do lar, iria concorrer em seu lugar. Pode? Perguntem às leis. O fato é que Dona Weslian teve sua candidatura anunciada pelo marido num dia, e no outro já entrou para a antologia dos debates eleitorais televisivos da história brasileira. Nunca na história deste país viu-se uma candidata tão qualquer nota em performance como Dona Weslian e o youtube está aí para o deleite de quem não teve a curiosidade de vê-la on line ao vivo.

JUMENTOS - Dona Weslian é uma peça política inadjetivável. Dizer que Tiririca é um palhaço imbecil é de uma obviedade de preguiçoso. Já definir a senhorinha Roriz é coisa para quem tem intimidade, não com as palavras, mas com os recônditos do comportamento de um tipo de mulher que o mundo parece ter parado de produzir. A coisa é tão delicada que os candidatos, animais políticos que odeiam o seu marido, aparentemente sentiram tanta vergonha alheia que foram uns cavalheiros quase mudos com ela, como se tivessem sido acometidos de um medo atávico de humilhá-la. E para que isso acontecesse não seria preciso nenhuma atitude grosseira. Bastava cometer a indelicadeza de perguntar alguma coisa a uma mulher que parece falar outra língua ou ter ido dopada de ansiolítico ao ponto de não dizer coisa com coisa.

E para fechar o espetáculo eleitoral, o imbatível frasista Lula da Silva conseguiu juntar Obama e o jegue numa mesma fala. Suado e embalado numa camisa rubra, o presidente da República tripudiava na quarta-feira de sua popularidade e lembrava de quanto Obama disse-lhe que era “o cara”. Imagine o que não diria agora, com os índices de aprovação que tem. E fechou o raciocínio: sua gestão foi tão boa que, no nordeste, os jegues estão planejando uma greve, pois estão todos sendo substituídos como meio de transporte por motocicletas. Ou seja, se tem alguém insatisfeito com o seu governo? Só os jumentos, que estão perdendo seu lugar no mundo.

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado em 03 de Outubro de 2010 no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com

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