domingo, 7 de novembro de 2010

Eleição, preconceito e redes sociais

Por Malu Fontes

Embora esta seja uma coluna sobre conteúdos veiculados na televisão, é fato que, nesta campanha que culminou com a eleição da primeira mulher para a Presidência da República, o suporte midiático onde literalmente o pau quebrou não foi a TV, mas a web, especialmente a mais movimentada rede social da vez: o twitter. Se por um lado falharam os prognósticos dos comentaristas políticos de plantão na TV e na imprensa escrita, segundo os quais os candidatos à presidência iriam repetir no Brasil a alavancagem de militância e de votos protagonizada por Barack Obama em sua campanha nos Estados Unidos, por outro irrompeu um fenômeno surpreendente: foi nas redes sociais, sobretudo no twitter, e na caixa pessoal de e-mail dos eleitores, que candidatos, militantes, oposicionistas e toda a sorte de outros bichos enfurecidos deram vazão aos sentimentos e comportamentos mais primitivos, mesquinhos e vulgares.   

Embora tenha sido na TV que os candidatos juraram aos eleitores que amavam todos os fetos do mundo, desde o encontro de qualquer óvulo com qualquer espermatozóide, que apareceram contritos, beijando santos, fazendo o sinal da cruz e assistindo missas e onde também elogiaram as palavras do Papa referendando a iniciativa dos bispos católicos brasileiros de não apoiar candidatos que não refutassem a legalização do aborto com todas as letras, foi fora da TV, ou seja, na imprensa escrita e na internet, que nasceram e vicejaram todas as narrativas baratas e conservadoras que pareciam jogar o debate eleitoral para a Idade Média. Quem não recebeu um e-mail, uma corrente tosca, enviados por todo o tipo de anencéfalo militante, contendo fotos de fetos ensanguentados ou falando da (falsa) proibição da presidente eleita de entrar nos Estados Unidos por ter participado da luta armada durante a ditadura militar?

CALÇAS MOLHADAS - E houve muito mais: fotos montadas mostrando o presidente da República com as calças molhadas, cartas patéticas de falsos brasileiros morando fora do Brasil, deslumbrados ou assombrados, dependendo de quem apoiavam, desabafos maldosos de uma doméstica que teria sido deletada da vida da candidata Dilma, cartas toscas e inverossímeis trocadas por mães e filhas inventadas, uma eleitora de Serra, outra de Dilma, em textos que faziam babar a classe média iletrada por conter duas ou três lógicas de chita puída. E mais podre que o conteúdo dessas peças paralelas de campanha era a moralidade atrasada, trevosa, capaz de surpreender até mesmo o alto escalão do Tea Party, nos Estados Unidos. De repente, uma turba metida a politizada, crítica e esclarecida, saiu das catacumbas para se colocar no lugar de conselheira eleitoral de quem nunca pediu ou precisou desse tipo de conselho. Depois desta eleição, certos conhecidos, antes tolerados, nunca mais serão vistos do mesmo jeito. Soa mais respeitável a imagem da professora d’O Troco toda enfaixada na imprensa do que o comportamento de pessoas supostamente esclarecidas que fazem advertência eleitoral usando imagens de fetos ensanguentados.   

MOÇAS VIRGENS - A selva vulgar que os militantes fundamentalistas e rasos criaram na Internet obrigou os candidatos a ajoelharem-se diante de seus oráculos de marketing para, no dia seguinte, na TV e com um discurso asséptico, jurar amor à família, beijar santas, ir à missa em Aparecida e Canindé, combater casamento gay, condenar mulheres que fazem aborto, mostrar recém nascidos sorridentes e abusar da imagem de trocentas mulheres grávidas. Era na TV que os candidatos prestavam contas morais aos eleitores mais medrosos e moralistas. Por eles, tiveram que repetir, como papagaios dóceis, juras de amor a Deus, ao Papa, aos espermatozóides, óvulos, embriões, fetos e à natureza. Gente aparentemente saudável, do ponto de vista da saúde mental, de repente começou a adotar o estranho hábito de gravar vídeos caseiros de si mesma, anunciando o apocalipse que viria se a candidatura X ou Y fosse bem sucedida. Na Bahia, de escritórios centrais de grandes partidos, saíram vídeos para o youtube com conteúdos vulgares e misóginos. No contexto da campanha eleitoral, a TV era uma casa de moças virgens e recatadas se comparada ao baixo nível dos conteúdos que circularam na internet. 

A vulgaridade da campanha na web foi num crescendo até estourar numa bolha de ofensa, racismo e preconceito. Antes de a televisão anunciar oficialmente a vitória de Dilma Roussef nas urnas, pululavam no twitter posts furiosos do sul e do sudeste, sobretudo de São Paulo, manifestando toda a sorte de preconceito contra os nordestinos, a quem chamavam de famintos, preguiçosos, parasitas do Bolsa Família, analfabetos, sub-humanos. Para a saúde de São Paulo, deveriam ser afogados. Aos nordestinos era atribuído o desastre representado pela eleição da presidente. Uma usuária do twitter, estudante de direito em São Paulo, causou tamanho repúdio por suas palavras relativas aos nordestinos que ganhou fama às avessas, com direito a punição dupla: a OAB de Pernambuco anunciou uma representação contra ela, no Ministério Público, por incitação ao preconceito contra os nordestinos; a empresa de advocacia onde estagiava não apenas a demitiu, como também aproveitou os minutos de fama para provar o quanto é briosa do ponto de vista ético e moral: divulgou na imprensa uma nota linda de protesto contra o comportamento da ex-pupila e, assim, teve seu nome emplacado em toda a web e mídia nacional. Mídia espontânea maior, impossível. A aqueles que enviaram conselhos eleitorais com fotos de feto, aconselha-se a não estranhar quando reencontrarem um conhecido há muito não visto e notar um olhar de desprezo cognitivo. A razão é óbvia; resta aceitar, calados, as boas vindas ao reino das nulidades.

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado em 07 de Outubro de 2010 no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com

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