terça-feira, 4 de maio de 2010

O que vale mais: areia ou minério?

                                        
                                              
A faixa de areia que forma a praia de Ponta da Tulha, no litoral sul da Bahia, é quase deserta. Mas, nos últimos meses, esse pedaço tranquilo da costa, de areia branca e água azul-turquesa, tornou-se foco de uma intensa disputa por um lugar ao sol.

De um lado, uma empresa multinacional, a Bahia Mineração (Bamin), apoiada pelo governo do Estado da Bahia.

Do outro, empreendedores do turismo, escoltados por ambientalistas. Todos lutando pelo direito de usufruir os atributos da praia: belos do ponto de vista dos ambientalistas e da indústria do turismo, práticos sob o olhar da Bamin e do governo do Estado. O motivo da discórdia é o plano do governo de construir um complexo portuário em Ponta da Tulha.

O projeto, chamado Porto Sul, inclui um porto com dois terminais, um público e outro privado, que seria usado pela Bamin para escoar sua produção de minério de ferro. Também está prevista a construção de uma ferrovia, de um aeroporto e de uma área industrial. Tudo isso dentro de uma área de Mata Atlântica protegida pela legislação ambiental, em uma região escolhida por investidores estrangeiros para se tornar um dos principais destinos do ecoturismo.

O complexo logístico de Porto Sul está no início da fase de licenciamento. As primeiras partes a serem construídas serão o terminal privado da Bamin, no porto, e a ferrovia que ligará a cidade de Figueiredos, no Tocantins, a Ponta da Tulha. A estrada de ferro de 1.500 quilômetros passará pela cidade de Caetité. no oeste da Bahia, onde a Bamin planeja extrair, de uma nova mina, 18 milhões de toneladas de minério de ferro por ano. O material seria transportado em trens por 520 quilômetros até o pátio da Bamin no Porto Sul, localizado alguns quilômetro, antes da faixa de areia da praia.

De lá, seria conduzido até o terminal de embarque, 2,3 quilômetros mar adentro, em uma esteira que cortaria a praia perpendicularmente, em cima de uma ponte (leia na ilustração abaixo). O governo da Bahia diz que a região foi escolhida pela localização e pela profundidade do oceano no local, de 19 metros. Seria preciso dragar apenas 2 metros de sedimentos para atingir os 21 metros necessários à atracação de grandes navios cargueiros.

Mas a instalação de um complexo logístico em Ponta da Tulha afetaria o ambiente. O próprio relatório de impacto feito pela empresa afirma que a dragagem de sedimentos tornaria a água do mar turva, o que comprometeria a beleza natural da área e afetaria o ecossistema marinho por causa da diminuição da luz solar. A construção de um quebra-mar próximo à plataforma de atracação dos navios mudaria o padrão de circulação das correntes marítimas.

A retirada de Mata Atlântica da costa para a instalação de depósitos de mercadorias colocaria em risco a sobrevivência de algumas espécies, como o macaco-prego-do-peito-amarelo, ameaçado de extinção. O relatório diz que a chegada de trabalhadores com suas famílias aumentaria a pressão sobre a educação, a saúde, o saneamento básico e a moradia da cidade de Ilhéus. Ainda há o risco do aumento da criminalidade, se nem toda a população atraída pelo empreendimento conseguir postos de trabalho.

Esses impactos ambientais e sociais podem afetar o turismo na região. Segundo um levantamento da Associação de Desenvolvimento Imobiliário e Turístico do Nordeste Brasileiro (Adit), pelo menos seis novos empreendimentos hoteleiros de alto nível, alguns com capital internacional, estariam planejados para o local. O presidente da Câmara de Turismo da Costa do Cacau, o italiano naturalizado brasileiro Luis Massa, diz que os investidores internacionais já teriam paralisado o andamento de dois dos projetos. "O potencial turístico de toda uma região será destruído para sempre porque uma empresa quer explorar uma mina que se esgotará em 15 anos", afirma Massa.

O empresário alemão Thilo Scheuermann diz que só não desistiu da construção de seu resort em Ponta da Tulha, o Makenna, porque não houve tempo. Quando ele ouviu os primeiros rumores sobre Porto Sul, em 2008, já tinha investido 80% dos R$ 15 milhões do projeto. "Que turista vai pagar R$ 800, a diária mais barata, para se sentar no restaurante do meu 'hotel e ver navios cargueiros passando no mar?" A inauguração do resort está prevista para julho. Para Scheuermann, um engenheiro que deixou o cargo de gerente de uma fábrica de autopeças na Alemanha para investir em Ponta da Tulha, resta torcer para que o projeto do Porto Sul não vá em frente. Ele se diz inconformado com a mudança repentina dos planos do governo da Bahia para a região. "Antes, eu era saudado pela minha iniciativa. Agora, sou tratado como um obstáculo ao desenvolvimento."

Os empresários do turismo foram para lá porque o lugar era protegido pela legislação ambiental. Parte da ferrovia e o pátio de armazenamento do minério estão projetados para ficar dentro da área de proteção ambiental da Lagoa Encartada e Rio Almada, resguardada pela legislação ambiental de qualquer uso para fins econômicos. "Estamos pasmacks com o grau de ilegalidade do projeto proposto pelo governo da Bahia", afirma o procurador da República em Ilhéus Eduardo El Hage. Ele e a procuradora Flávia Arruti entraram na Justiça com uma ação civil pública pedindo que, caso o Ibama conceda a licença prévia do empreendimento, ela seja suspensa. "Não se pode satisfazer apenas interesses privados em detrimento do interesse público", diz El Ha.ge. Não há previsão de quando sai o resultado dessa primeira etapa do licenciamento.

O governo da Bahia diz que a obra vai trazer desenvolvimento. "Aproveitamos a existência desse projeto para aumentar a infraestrutura da região", diz Roberto Benjamin, secretário extraordinário da Indústria Naval e Portuária da Bahia. "Mais empresas serão atraídas, gerando empregos em um povoado paupérrimo que nem água encanada tem." Estima-se que Porto Sul movimentará 25 milhões de toneladas de mercadorias por ano quando estiver pronto e se tornará um
canal de exportação para Minas Gerais.

Um novo complexo logístico vai além da criação de postos de trabalho locais. "Ampliar a infraestrutura logística da Bahia é uma necessidade", afirma Paulo Villa, diretor executivo da Associação de Usuários dos Portos da Bahia (Usuport), Os três portos em operação no Estado — Salvador, Aratu e Malhado — estão saturados. Segundo dados da Usuport. quase 40% dos produtos exportados pela Bahia saem pelos portos de outros Estados. Frutas produzidas no Vale do Rio São Francisco chegam a percorrer 900 quilômetros de caminhão para ser exportadas pelo Porto de Pecém, no Ceará.

O confronto de interesses na Bahia é representativo do desafio que o Brasil terá de vencer. Um estudo do Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro mostra que 22 dos 25 principais terminais portuários do país estão operando com mais de 75% de eficiência. "Isso significa que esses portos rapidamente estarão saturados, porque não planejaram sua expansão", afirma Peter Wanke, um dos autores do estudo. À beira de um colapso logístico, os produtos brasileiros podem perder competitividade graças a custos extras com transporte.

Qualquer tipo de empreendimento sempre terá impacto ambiental. Uma forma clássica para compensar uma obra potencialmente destrutiva é criar uma nova área protegida equivalente. No caso do Porto Sul, a empresa sugere a criação de uma reserva particular para conservação, sem especificar o tamanho nem o local. "Existe uma desconfiança quanto à capacidade do Estado de conseguir planejar e fiscalizar a compensação ambiental de uma obra desse tamanho", afirma o ambientalista Rui Rocha, do Instituto Floresta Viva, em Ilhéus. Principalmente porque a própria obra já é um desrespeito a uma área de preservação. Se houvesse mais garantias institucionais da criação e manutenção de paraísos naturais com potencial turístico no litoral da Bahia, talvez a oposição à obra não fosse tão forte.

(Revista Época)

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