Por Malu Fontes
Pouco acostumado a grandes operações policiais, como as empreendidas há mais de uma semana, em Salvador, na região do Nordeste de Amaralina e depois no Calabar e Alto das Pombas, o telejornalismo local deu sinais de que poderia, ou poderá, incorrer em erros capazes de gerar consequências e riscos para os moradores. Se em um primeiro momento as operações coordenadas pela Secretaria de Segurança Pública da Bahia podem dar aos moradores desses bairros e à opinião pública uma idéia de alívio a ser celebrado contra o até então domínio do poder do tráfico, a exemplo do que vem ocorrendo no Rio de Janeiro com a implantação, em vários morros, das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), em Salvador a banda ainda está tocando muito diferente de lá e não é exagero afirmar que nada há de concreto a se comemorar.
CATIVEIRO - Embora, desde o início, a operação policial realizada no complexo de bairros localizados na região do Nordeste de Amaralina (compreendendo as áreas de Santa Cruz, Chapada do Rio Vermelho, Vale das Pedrinhas e o próprio Nordeste) tenha sido anunciada como pontual, com duração de apenas um fim de semana, o fato é que, diante dos moradores, as emissoras de televisão comportaram-se no primeiro dia como se todas as forças de apoio institucional do Estado tivessem desembarcado de mala e cuia nesses bairros. Na primeira manhã de uma operação com data para acabar, as câmeras, microfones e repórteres esquadrinhavam moradores como se todos já pudessem ser abertamente tratados como membros de um cativeiro libertados para sempre pelas forças de bem e de paz do Estado.
Qual a justificativa de uma emissora de TV para mostrar um senhor idoso, dar-lhe o nome, mostrar sua casa, incluindo fachada, cor de parede, rua e detalhes dos adereços das paredes, dizendo-se super contente com a ocupação policial e queixando-se da ação dos bandidos? Tanto é direito dele afirmar isso quanto das emissoras de TV contar isso a seus telespectadores. Mas, por que, quando é do interesse das emissoras, para denunciar poderosos, por exemplo, elas sabem muito bem usar de expedientes técnicos que distorcem rostos, escurecem cenários, alteram vozes? Que seu fulaninho queira dar entrevista, é direito dele e sorte das emissoras. Mas seria para não incorrer no erro no paternalismo e da tutela que o repórter, o editor, o câmera, não poderiam atribuir a esses personagens um tanto de ingenuidade ou inocência? Não bastaria imaginar esses entrevistados tendo que se ver, na semana seguinte, sem a presença ostensiva da Polícia em sua rua e sem as poderosas câmeras de TV que poderiam vir em seu socorro, acaso um dos donos do pedaço volte e, devidamente envenenado por conta da entrevista, queira dar-lhe algum tipo de lição? Ou não é esta a lógica dos homens do tráfico nos torrões onde atuam?
PERDER OS DENTES - Outro elemento repetido à exaustão pela opinião pública que se manifestava na TV, no jornalismo impresso e nas ruas era a comparação inevitável com as UPPs no Rio de Janeiro. Pouco ou nada informada sobre os projetos, os critérios ou as estratégias de planejamento da Segurança Pública para começar essas operações pelo Nordeste de Amaralina e Calabar, a população tende a imediatamente entendê-las como equivalentes às do Rio, quando, na verdade, há diferenças estruturais que seria melhor não adjetivar de tão abissais. Nas UPPs, pelo menos é o que se prega oficialmente, quem adentrou morros adentro não foi apenas a Polícia, mas o Estado, com coleta de lixo, posto de saúde, iluminação, serviços. Sobre isso, ainda não se fala.
Os mais deslumbrados com as pirotecnias do BOPE em Tropa de Elite e que veem a solução para a violência de Salvador em munição e heróis, em capitães Nascimento às dúzias e em tiros e armas para tudo o quanto é lado, referem-se às operações com pessimismo, mas atribuem seu fracasso à causa errada. Dizem que a Polícia Baiana não tem cacife para fazer o que se fez no Rio. Ou seja, é o nordestino lamentando-se coitadizando-se mais uma vez, olhando para o sul maravilha e se achando sem cartucheira e munição. O problema é a estrutura, estúpido, não a conjuntura, poderia-se dizer. Não tem BOPE, Capitães Valentões nem cacife de filme de Hollywood que funcione enquanto os meninos e as meninas do Calabar ou do Nordeste de Amaralina não tiverem uma escola decente, enquanto continuarem perdendo os dentes para as cáries antes da maioridade, ou enquanto, mesmo com um diploma de um curso profissionalizante embaixo do braço, continuem sendo rechaçados por seus eventuais empregadores porque estes têm medo de seus endereços.
FITINHA DO BONFIM - Por fim, diante do estranhamento causado pela população de dezenas de outros bairros de Salvador que dizem sentir-se (e as estatísticas lhes dão razão) mais acuados pela violência e pela onda de homicídios que lambe a cidade do que os bairros objeto das operações até agora, sobretudo nos finais de semana, não custa nada o Governo do Estado explicar a todos por que é mais importante, estrategicamente, sufocar o tráfico no Calabar e no Alto das Pombas do que em Narandiba, no Arenoso, no Uruguai ou ao longo do Subúrbio Ferroviário, por exemplo.
E é preciso explicar também como será possível usar como laboratório de treinamento policial, em termos de ocupação, um local com cerca de 20 mil moradores (Calabar e Alto das Pombas) e aplicar os resultados em bairros infinitesimamente mais violentos e com 200, 300, 400 mil moradores. Mais difícil é convencer as pessoas de que os ambulantes de bugigangas do Pelourinho e do Bonfim são fofíssimos e agradabilíssimos aos olhos dos ‘turista’, ao ponto de os segundos ficarem amicíssimos dos primeiros enquanto compram uma fitinha do Bonfim superfaturada e com poderes hiperbolizados. E isso a propaganda da Bahiatursa faz tão bem que tem até quem acredite. Desde que more fora de Salvador e nunca tenha vindo aqui, claro. Enquanto essa explicação não é dada, para os mais pobres e encurralados dos demais cantos da cidade fica prevalecendo a tese de que os bairros até agora escolhidos o foram não em função do que há dentro deles, mas fora, ao redor: a vizinhança. E ela é rica.
Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 03 de abril de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA.maluzes@gmail.com
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